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De onde vimos, para onde vamos e como caminhamos? - Nota do Bispo de Beja para a primeira semana da Quaresma

1. À procura do sentido da vida
Um destes dias, viajando a caminho de Fátima, ouvia pela radio testemunhos de pessoas a narrar a sua fuga da guerra, deixando tudo o que tinham conseguido durante muitos anos de trabalho e levando apenas as pessoas do seu agregado familiar, alguns bens, sobretudo dinheiro e mantimentos para os primeiros tempos. A certa altura faltaram os alimentos e o dinheiro tinha perdido o valor cambial, pelo que começaram a vender os outros bens a troco de alimentos e combustível. Habituados a um relativo bem estar, ficaram assustados quando viram uma criança saltar do colo da mãe, para apanhar cascas de laranja e comer. Por fim, procuraram trabalho a troco de comida, mas depressa foram despedidos por não terem licença de trabalho nem residência.
Estas histórias de vida precária, sem estabilidade nem segurança, mas com grande vontade de sobreviver e vencer, fizeram aflorar em mim memórias do meu percurso pessoal, em Portugal e no estrangeiro e surgir muitas interrogações. Afinal de onde vimos e para onde vamos? Que sentido tem a existência humana? Porquê uns parecem ser bem sucedidos e outros esmorecem e ficam pelo caminho? Porquê ainda hoje a muitos não chegam as migalhas que caem da mesa dos ricos? Porquê tantas desigualdades e rivalidades no mundo, se tudo deixamos no dia da nossa morte?
Ao mesmo tempo, ouço a resposta de Jesus ao tentador, no evangelho do primeiro domingo da Quaresma: nem só de pão vive o homem (Lc 4, 4). A que o evangelho de S. Mateus (Mt 4, 4) acrescenta: mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Por isso pergunto-me, e a vós que me escutais ou ledes: de quê vivemos nós e como nos alimentamos? A prioridade da nossa vida é o ventre, o dinheiro, o prazer, os bens materiais? Que significado tem para nós a voz de Deus, a sua palavra pronunciada pelos profetas e, sobretudo, a sua Palavra encarnada, Jesus Cristo?

2. Povo errante, em terra estrangeira
Muitas vezes sentimos que esta não é a nossa pátria definitiva. O nosso coração sente-se deslocado no terreno que pisa. Constatando a fragilidade da nossa vida e daquilo que suporta o nosso relativo bem estar, sabemos agradecer o que temos e somos? Acolhemos a vida como um dom a oferecer ou como um direito egoísta?
Vivemos um tempo de grande insegurança familiar, laboral, económica, política e até religiosa. Vemos muitos lares a desfazer-se, promessas de amor fiel e apaixonado a serem quebradas, empresas a falir, o desemprego a crescer, os jovens mais preparados a emigrar, os políticos e governantes a contradizerem-se e sem medidas que assegurem o nível de vida dos cidadãos.
Diariamente fazemos a experiência da precariedade. Até a renúncia do Santo Padre nos apanhou de surpresa no princípio da semana passada e nos acordou para uma nova realidade do papado. A estrutura mais estável da sociedade ao longo de séculos também é frágil. Tudo isto nos interpela para descobrirmos as prioridades da vida. Onde e em quem pomos a nossa esperança? Nos homens, em Deus, nos bens materiais, no poder, nas glórias e vaidades humanas?
Ao iniciar a sua vida pública Jesus experimentou todas essas tentações. Trata-se de coisas boas, mas que nos podem reter e prender no caminho da vida, roubando-nos a dignidade e liberdade de filhos de Deus e irmãos uns dos outros.
Jesus dá prova da sua grande liberdade e fidelidade a Deus e à missão que lhe foi confiada: salvar a humanidade, reconduzindo-a para a verdade do seu ser, feita para amar. Nada pode preencher o íntimo do ser humano, revelar o seu sentido integral, senão o encontro com o outro, no qual Deus se manifesta e entrega.
Para fazermos esta experiência da vida plena em Deus, precisamos de nos esvaziar de nós mesmos. Ajuda-nos a escuta da Palavra de Deus, a contemplação do mistério da vida de Jesus, a comunhão e o amor fraterno, a partilha com os irmãos do que temos e somos.

3. A resistência às tentações do caminho e a Fé
Na sua mensagem para a Quaresma deste ano, o Papa Bento XVI afirma que crer na caridade suscita caridade. Contemplando o amor que Deus nos tem, manifestado na vida de Jesus Cristo, somos impelidos a responder com amor, querendo e fazendo o bem a quem Ele ama. Este é um processo sempre a caminho, nunca concluido. O cristão é uma pessoa conquistada pelo amor de Cristo e, movido por este amor, sempre aberto ao amor do próximo. A caridade é, pois, a vida da fé, afirma o Papa, que nos conforma cada vez mais a Cristo.
Quando Pedro e os apóstolos, depois de terem recebido o Espírito Santo, testemunhavam diante da multidão, reunida em Jerusalém, que Jesus, aquele que tinham morto, estava vivo, tinha ressuscitado e era o único salvador, o Messias prometido, os ouvintes, emocionados, perguntaram-lhes: que devemos fazer? Os apóstolos responderam: «Convertei-vos e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo” (Act 2, 38). S. Paulo escreve aos Romanos, trecho lido na segunda leitura do primeiro domingo da Quaresma: “se confessardes com a boca: «Jesus é o Senhor», e acreditardes no vosso coração que Deus o ressuscitou de entre os mortos, sereis salvos. É que acreditar com o coração leva a obter a justiça, e confessar com a boca leva a obter a salvação” (Rom. 10, 9-10).
A Quaresma é realmente um tempo propício para reavivarmos a fé do nosso batismo, que nos dá a verdadeira vida, a vida eterna. Confessar a fé em Jesus Salvador, com a boca e o coração, leva-nos a dizer não ao pecado, a uma vida contrária ao amor a Deus e aos irmãos, a resisitir às tentações do materialismo, do poder e das glórias e vaidades do mundo, para vivermos mais à maneira de Jesus, que entregou a sua vida para nossa salvação.
Escutemos, pois, mais a palavra de Jesus, olhemos para o seu testemunho de vida, sejamos mais uns para os outros e fortaleçamos a nossa comunhão fraterna, a começar pela família, as nossas comunidades paroquiais e movimentos. Arranjemos mais tempo para escutar, em grupo, a mensagem evangélica e façamos uma leitura da nossa vida à luz dessa palavra, para na Páscoa podermos sentir a alegria da ressurreição e de uma vida nova, toda informada pelo Espírito de Deus, pela caridade.
Foram elaboradas catequeses no âmbito da celebração do nosso Sínodo diocesano, para que as façamos em pequenos grupos e demos o nosso contributo para a renovação da vida cristã e eclesial nesta diocese. Respondamos com amor a Cristo, à Igreja e aos nossos irmãos, que vivem nesta diocese. Expressemos aquilo que somos e queremos ser como cristãos e membros do Povo de Deus. Somos pecadores, mas chamados a ser santos, como Jesus é santo. A profissão da fé, com a boca e o coração, com os olhos fixos em Jesus, renovará em nós a esperança e a força do amor. Assim também daremos o nosso contributo valioso para vencer o desânimo e a falta de alegria e criatividade que domina a nossa sociedade.

† António Vitalino, Bispo de Beja